30.5.08

há sempre alguém que morre antes.

acordo e continuo mergulhando na água quente. vou nadando percurso vazio contra a correnteza, sinto como tudo passa de ser outra coisa, que não estremece com o meu lamento.

quando saio da água, anoiteceu. me sento. a cabeça entre os joelhos, o ventre protegendo o ventre e a vontade de contar uma história antiga, de uma maneira bem sincera, para alguém que não me conhece. começa assim: aconteceu na américa do sul, que também é em qualquer parte e eu não sei o que é que deixa de me visitar quando a noite vem e nem porque desproporção fui criando uma mão direita tão forte que não se contém. uma espécie de febre. armários que aguardam por coisas de outros, alguém que não se conforma nunca vai sair de casa.

- - - -

estou ruim com as palavras.
ou de mal, feito criancinha.
não quero a bola, não quero.

é uma espécie de maldição, já que tudo que eu digo, some, muda de lugar, vira outra coisa, me bate na cara.
- - - - -

E então lá vamos nós e as sentenças, sentados no banco se praças houvessem nessa cidade, a observar as formigas e as ervinhas e a rir da maneira de justapor portuguesa.
Agora como dizer e não te dizer que estremeço, que não me habito e que não há raio que me parta desse labirinto?

Hoje que acordei mais cedo do que de costume, cedo de um jeito que a gente ia ao dentista e depois de cada barbárie obturada você me tirava da anestesia com um sundae recompensa no Brooklin, Me tiraram os dentes da vida, arrancaram de dentro da roda, pra você ver que existe dentro, um dentro literal.
De dentro da sua lucidez não finja mais que não teme ao seu redor as dispersões, os bandidos, os choques elétricos, a noite que seu pai não veio mais. Suas gengivas sangravam tinta de lula no rio de óleo negro o caixão singrando o Tejo que cada um carrega em pessoa
trinta e dois pontos negros na sala de televisão de dentro da carne da nossa morte e dor de um jeito que nem sorvete adiantava, uma vontade de morrer sem morrer jamais. Papai me ensine a compaixão que tem por mosquitos palavras hibiscos e abismos me diga se devo matá-los antes que me matem?

- -

e tempo haverá?
tempo para o chá
e ainda há quermesses?

o mundo todo é um interior sem tamanho
e nós no subúrbio do fundo da periferia

ao longe escuto os fogos
artifícios

29.5.08

"e eu, com a mó do moinho a pesar-me no ventre, Não há dúvida, emalucaram, entraram pela cerveja adentro e emalucaram como o meu pai emalucou depois de um jantar de lulas no aniversário da minha madrasta, terminava o arroz e nisto imobilizou-se, ergueu os membros acima da cabeça e afirmou Pronto, sou uma acácia, O quê?, estranhou o meu tio que trabalhava de capador, Sou uma acácia, insistiu meu pai a trepar para a toalha, em vindo maio deito bolinhas nos ramos, O meu marido tem uma cisma que é árvore, disse a minha madrasta ao farmacêutico, você não vende injeções contra as árvores?., e eu Abandonou a loja, não liga às fazendas, gasta os dias empoleirado numa mesa a suplicar Não me podem, não me podem que este galho está são, e o farmacêutico Contra as árvores não conheço, já experimentou no Porto?, e o meu pai, a criar raízes na toalha, a lançar ramos na direção da lâmpada do teto, a tombar pólen do cabelo, o meu pai a pedir que lhe abríssemos a janela por lhe fazer falta a brisazinha da tarde, mas passada uma semana tivemos de aferrolhar as portadas, Desculpe, pai, dado que durante a noite lhe soltvam morcegos das cavidades do tronco, e então serraram-no ao meio, quando a respiração dele era apenas um soprozinho de nortada, para que coubesse na ambulância, e a minha madrasta para a família, a assoar os olhos, Ser acácia é uma doença horrível, o médico chamou-nos de lado Pode ser que se o plantarmos no jardim e o adubarmos com cautela melhore, e o meu irmão para o do turbante, a bater a picareta na alcatifa, Esqueça os colibris, meu caro, esqueça essas tretas que voar com a ajuda da cerveja é canja, eu ia ao Minho logo ao segundo gole no tempo de Joanesburgo, difícil é a gente andar, como os mineiros e os mortos, enfiados na terra,"

António Lobo Antunes, em A ordem natural das coisas.

22.5.08

she's a rainbown

no meio do caminho o barro
organizar rasuras tirar um sarro

20.5.08

Com o vento pelas costas
morro e apago-me
na grande monção -
é então que verdadeiramente vivo.

(16-12-1965)
Paul Celan.

eu no aviãozinho

sabe coisas assim? quando alguém foi você já voltava? então, paciência nunca foi o meu forte. então muitas vezes pensei em estar voltando em alguma coisa que alguém me falava e muito basicamente se ouvisse numa abertura mínima eu via que a pessoa estava só também, só no lugar dela. e que talvez ela também estivesse preocupada em não parecer ausente quando na verdade estava voltando, voltando de alguma parte nela onde também, no fundo, não havia ninguém.

e eu que gostava tanto de contar histórias de repente não tinha mais nada a dizer. não porque já tivesse entendido ou dessa vez, finalmente, não entendesse mais nada. não é que olhasse a água e dessa vez não quisesse mergulhar ou já estivesse nadando nela em pensamento. não podia dizer se estava dentro, agora que era o próprio dentro.

pegava uns panos pra lavar, um romance pra ler, plantava sementes de fumo no vaso da pitangueira da sala e emboras tivesse preguiça disso ainda se sentia sempre criando e refletindo um personagem com uma história cada vez mais vazia -até no amor sabia desacreditar se precisasse - e imaginava como, como, como eu atravessaria este um mês que falta, até o momento da partida?

19.5.08



para que tirar comoção de pedras?

18.5.08

Empédocles, no século V a.C., descreveu os olhos como nascidos da deusa Afrodite, que "confinou um fogo nas membranas e tecidos delicados; estes seguraram a água profunda que fluía em torno, mas deixaram passar as chamas internas para fora." Mais de um século depois, Epicuro imaginou essas chamas como películas finas de átomos que fluíam da superfície de cada objeto e entravam em nossos olhos e mentes como uma chuva constante e ascendente, encharcando-nos de todas as qualidades do objeto. Euclides, contemporâneo de Epicuro, propôs uma teoria oposta: dos olhos do observador saem raios para apreender o objeto observado.


(trecho de uma história da leitura, do alberto manguel, como prometido)

14.5.08

A suposta existência

Como é o lugar
quando ninguém passa por ele?
Existem as coisas
sem ser vistas?

O interior do apartamento desabitado,
a pinça esquecida na gaveta,
os eucaliptos à noite no caminho
três vezes deserto,
a formiga sobre a terra no domingo,
os mortos, um minuto
depois de sepultados,
nós, sozinhos
no quarto sem espelhos?

Que fazem, que são
as coisas não testadas como coisas,
minerais não descobertos - e algum dia
o serão?

Estrela não pensada,
palavra rascunhada no papel
que nunca ninguém leu?
Existe, existe o mundo
apenas pelo olhar
que o cria e lhe confere
espacialidade?

Concretitude das coisas: falácia
de olho enganador, ouvido falso,
mão que brinca de pegar o não
e pegando-o concede-lhe
a ilusão de forma
e, ilusão maior, a de sentido?

Ou tudo vige
planturosamente, à revelia
de nossa judicial inquirição
e esta apenas existe consentida
pelos elementos inquiridos?
Será tudo talvez hipermercado
de possíveis e impossíveis possibiliíssimos
que geram minha fantasia de consciência
enquanto
exercito a mentira de passear
mas passeado sou pelo passeio,
que é o sumo real, a divertir-se
com esta bruma-sonho de sentir-me
e fruir peripécias de passagem?

Eis se delineia
espantosa batalha
entre o ser inventado
e o mundo inventor.
Sou ficção rebelada
contra a mente universa
e tento construir-me
de novo a cada instante, a cada cólica
na faina de traçar
meu início só meu
e distender um arco de vontade
para cobrir todo o depósito
de circunstantes coisas soberanas.

A guerra sem mercê, indefinida
prossegue,
feita de negação, armas de dúvida,
táticas a se voltarem contra mim,
teima interrogante de saber
se existe o inimigo, se existimos
ou somos todos uma hipótese de luta
ao sol do dia curto em que lutamos.

Drummond, n' A paixão medida. Vontade de dizer um absurdo, que ninguém se ofenda, mas tirando ele e T.S. Eliot o resto é bobagem.

- --
O mundo suporta os ombros.

percebo que continuo me especializando em coisas como: te ver e ficar doente, escrever diários, sentir camadas de frio e calor no ar feito se fosse água. também em sentir um otimismo aterrador, ao ponto de pesar no fundo das coisas que vivo ficando doente para enfrentar a melhora e redescobrir-me assim num renascimento, mais uma vez, enfim.
O ceticismo de certos homens me constrange pelo dogmatismo. Estão repletos os homens. Repletos de tontices.

13.5.08

É preciso se morrer mesmo integralmente e deixar o novo nascer com todas as implicações terríveis do sentimento de perda da falta de equilíbrio interior, do afastamento da realidade já adquirida, é o vazio vivido como tal, até o momento dele se transformar no vazio pleno, cheio de uma nova significação.

lygia clark

7.5.08



sábado

estou tentando amestrar a mão esquerda para que ela viva sozinha. caso a outra, pele de cobra, travesti presenteada dos adornos materiais, anel de prata, pulseira de ébano, realmente hipertrofie. será a esquerda que a presenteia, por que entende dessas coisas sentimentais?

meu jardim-da-infância para sempre, inerte de ser a outra que assiste, agora própria fazendo o trabalho, a esquerda escreve à máquina, meio débil, no computador, corta o pão e também saliva. mas, somente quando desenha é que a direita não se entedia. love will tear us apart, again.


domingo

tudo tem um cheiro que se estende pela sala.
toda coluna será castigada. já dizia jabor rodrigues.

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(à noite)
as duas pessoas que quero nesse perto-longe se chamam marcos.
esse falou de mim no setelinhas, rinhas de galo, um dia animado.

1968?

quando eu tinha 11 anos, minha vó me deu de presente uma viagem para a disney. foi terrível. eu era grande demais, já tinha pânico de homens vestidos em pelúcia e, como, por economia, fui com uma agência de viagens pequeniníssima, era eu sozinha misturada num bando de famílias de uma zona oposta à minha na cidade. se já entendesse de coisas que entendo hoje, teria observado a realidade lisérgica do universo em derretimento, mas na época fui me transformando mesmo no alienígena que me viam. tudo isso para dizer que lá comprei uma camiseta em que o pateta era um cientista com a frase: "the future is now or is tomorrow?"(detalhe que eu sabia lhufas de inglês e achava que "tomorrow" era "yesterday").

- -
anotação posterior: cecília mandou esse link sobre o assunto.

- -
preciso de mais uns quarenta anos para falar sobre meu 1968.

mas, por enquanto, se o mundo é mesmo um espetáculo, meu bem, melhor ser platéia cativa do que estrela do panteão nacional? as minhas apostas: desconfio de quem acha as coisas, num geral, feias e me importo com aqueles que contracenam e sentem dor. com os outros, comigo, com eles. e acredito que existam: intimidade, calor e frio.

o estômago é o novo coração e o coração é o novo leão.

5.5.08

Isso de mim que anseia despedida
(Para perpetuar o que está sendo)
Não tem nome de amor. Nem é celeste
Ou terreno. Isso de mim é marulhoso
E tenro. Dançarino também. Isso de mim
É novo: Como quem come o que nada contém.
A impossível oquidão de um ovo.
Como se um tigre
Reversivo,
Veemente de seu avesso
Cantasse mansamente.

Não tem nome de amor. Nem se parece a mim.
Como pode ser isso? Ser terno, marulhoso
Dançarino e novo, ter nome de ninguém
E preferir ausência e desconforto
Para guardar no eterno o coração do outro.

Hilda Hilst, III poema de "Cantares do Sem Nome e de Partidas",
em Cantares
onde também está o

I

Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.

Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena.E diminuta e tenra
como só soem ser aranhas e formigas.

Que este amor só me veja de partida.

2.5.08



(esse post é para a cecília)
vejo em tudo aquilo que se faz um (índice de) risco.
nos fazeres manuais ou escaladas de everests, as margens entre segurança e risco talvez sejam mais claras do que na fotografia ou na escrita. alguém que faz uma coisa com segurança dentro dela e de si mesmo, costuma se expor a mais riscos do que aquele que teme por si ou por alguma outra coisa ausente.

por exemplo, nessa situação, em que estavámos recolocando a cortina, pensei em dizer para o alfredo tirar o grassmann debaixo da linha da escada e protegê-lo no chão. mas refleti que isso era uma coisa que eu, desacostumada a furadeiras, escadas bambas e construções faria para criar uma margem maior de segurança ao quadro e aos meus dias futuros (não ter que levar nada para consertar é sempre melhor do que ter). já ele, não. ele sabe o que faz e, por isso, pode aparentemente colocar um quadro em risco, sem nem colocá-lo, na verdade.

me parece que quanto mais alguém está seguro e atento fazendo alguma coisa, mais riscos é capaz de enfrentar, sabendo ou não deles. e vejo dignidade em parafusos e palavras. coragem, sim, para atravessar.

não sei quanto aos fotógrafos, mas maus escritores costumam trabalhar com margens de segurança maiores. não que não se possa ser feliz e bem assim. deve dar, que sei eu que nem comecei bem? sei que podem virar bons azulejistas de expressões sem fendas nem rasuras, sairem no jornal, minha tia pode comprar seus livros todos. mas criarem apoteóticos navios afundando, dedos congelados no alto de tudo, terremotos que se alastram por toda uma vida no planeta, ah, sem risco é bem raro.

 

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