14.5.08

A suposta existência

Como é o lugar
quando ninguém passa por ele?
Existem as coisas
sem ser vistas?

O interior do apartamento desabitado,
a pinça esquecida na gaveta,
os eucaliptos à noite no caminho
três vezes deserto,
a formiga sobre a terra no domingo,
os mortos, um minuto
depois de sepultados,
nós, sozinhos
no quarto sem espelhos?

Que fazem, que são
as coisas não testadas como coisas,
minerais não descobertos - e algum dia
o serão?

Estrela não pensada,
palavra rascunhada no papel
que nunca ninguém leu?
Existe, existe o mundo
apenas pelo olhar
que o cria e lhe confere
espacialidade?

Concretitude das coisas: falácia
de olho enganador, ouvido falso,
mão que brinca de pegar o não
e pegando-o concede-lhe
a ilusão de forma
e, ilusão maior, a de sentido?

Ou tudo vige
planturosamente, à revelia
de nossa judicial inquirição
e esta apenas existe consentida
pelos elementos inquiridos?
Será tudo talvez hipermercado
de possíveis e impossíveis possibiliíssimos
que geram minha fantasia de consciência
enquanto
exercito a mentira de passear
mas passeado sou pelo passeio,
que é o sumo real, a divertir-se
com esta bruma-sonho de sentir-me
e fruir peripécias de passagem?

Eis se delineia
espantosa batalha
entre o ser inventado
e o mundo inventor.
Sou ficção rebelada
contra a mente universa
e tento construir-me
de novo a cada instante, a cada cólica
na faina de traçar
meu início só meu
e distender um arco de vontade
para cobrir todo o depósito
de circunstantes coisas soberanas.

A guerra sem mercê, indefinida
prossegue,
feita de negação, armas de dúvida,
táticas a se voltarem contra mim,
teima interrogante de saber
se existe o inimigo, se existimos
ou somos todos uma hipótese de luta
ao sol do dia curto em que lutamos.

Drummond, n' A paixão medida. Vontade de dizer um absurdo, que ninguém se ofenda, mas tirando ele e T.S. Eliot o resto é bobagem.

- --
O mundo suporta os ombros.

percebo que continuo me especializando em coisas como: te ver e ficar doente, escrever diários, sentir camadas de frio e calor no ar feito se fosse água. também em sentir um otimismo aterrador, ao ponto de pesar no fundo das coisas que vivo ficando doente para enfrentar a melhora e redescobrir-me assim num renascimento, mais uma vez, enfim.

4 comentários:

sabina anzuategui disse...

Eu sempre adorei um verso: "as coisas. que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase". Um dia procurei no orkut e vi que MUITAS pessoas citavam essa frase. Me senti meio comum. Então comecei a reler o Claro Enigma, que é menos conhecido. Embora eu realmente adore A rosa do povo.

júlia disse...

é, sabina esse verso é lindo mesmo. mas não se sinta comum não, o poema é que é famoso demais, não por isso menos bonito. do mesmo gostava daquela parte

"botar fogo em tudo, inclusive em mim
ao menino de 1918 chamavam anarquista
porém o meu ódio é o melhor em mim"

gostava disso quando comecei a ler o drummond, eu tinha quase quinze anos. foi um caminho sem volta. eu nunca havia me interessado antes por literatura escrita, ainda mais poesia.

numa viagem em ouro preto, a obra completa era um dos livros que meu pai havia levado e enquanto ele e minha mãe dormiam eu lia ouvindo no discman o caetano veloso. lia o alguma poesia, pelo palatável também. é o que me lembro. não sei se o drummond apareceu antes. o caetano certamente.

gozado que antes de ontem fui reler uns poemas que escrevia na adolescência e eles têm todos uma temática meio, digamos, mineira, itabira do mato dentro...

mas desde então tudo me lembra drummond. esses dias que esfriou, não saía da minha cabeça:

talvez uma sensibilidade maior ao frio
desejo de voltar mais cedo para casa

há sempre um drummond que retorna.

conto também que a primeira dívida que fiz na vida foi pra comprar o livro de cartas entre ele e o mário, que li numa sentada só na rede da varanda do meu ex-namorado.

ah! o claro enigma! é o livro. entre meus preferidos junto com o sentimento do mundo e o brejo das almas. mas o drummond é tipo o machado e neles tudo se (me) recoloca e vai que vai,

haha

beijo!

Sérgio disse...

Bem, sem ofensas e ofendidos, mas me soa fundamentalismo. Beijo.

júlia disse...

bem sérgio sabes bem que um pouco de radicalismo é fundamental

(e que eu sou um container vindo pela sombra ;)

 

Free Blog Counter