27.2.09

"(algumas razões)

O primeiro dever de alguém que acredite na necessidade e eficácia do verídico será a independência, quero dizer: o começo por si mesmo.

A leitura comunicada é um sinal, talvez o mais facilmente impressionante, do amor ou desamor dos outros. Este sinal do alheio nos terrenos da solidão propende para, e estabelece, uma corrente magnética. É perturbante verificar que a solidão possui uma qualidade expansiva, estimula réplicas, ou seja: o exercício íntimo de certas forças movimenta-se para um écran, incita a um significado externo. O leitor é tido então como um cúmplice superlativamente adequado ao texto da solidão. Imagino que tal adequação suposta - advinda de que perícia, de que faculdade subtil para induzir experiências, de que estranho talento de receptividade? - implica logo a sabedoria inocente de aceitar como absoluto o universo da solidão, a incontrovertível razão de autor. Da indiscutibilidade dessa razão partiria o talento de fruir para o "amor inteligente". Mas, desde que se obste à total legitimidade da razão de autor, fere-se ao verídico, sua força e origem, a liberdade que se executa num largo mapa de pequenas liberdades contínuas. Porque o autor teria então de justificar tudo, a começar por si mesmo, pela sua veracidade, quer dizer: pela sua própria realidade. É que uma solidão, e a obra que faz e é, buscam as garantias de existir. E apenas isso.

É difícil viver entre a falsa inteligência alheia. Antes ser absolutamente ininteligível perante uma ininteligência senhora de si do que ser devorado pelas partes que os outros escolhem, em puro abuso, para satisfação da própria inteligibilidade, deles, estrangeiros.

Que facilidade sua os conduz à ilusão do seu próprio nome?

(Os destinatários são sempre outros).

O equívoco é só esse de confundirem a nossa dificuldade com a sua facilidade. E esta ilusão de suficiência é dramática: porque pode atrasar-nos na direcção dos destinatários verdadeiros. Quando se compreenderá que se trata de cumplicidade?

(Octávio Paz: sólo podemos hablar con verdad de aquello que nos inspira y apasiona.)"

Herberto Helder, Photomaton & Vox

amor

esperarei quinze noites
e se elas parecerem trezentas
é porque quinze foram.

24.2.09

beba, babe



cumuruxatiba ou alcobaça, 1992

[gil engendra em gil rouxinol]

23.2.09

amor

não fiz nada eu juro
eu tava aqui no escuro
e senti o cheiro do aeroporto de guarulhos

era uma harpa um jarro e um casal de namorados

acordo é engraçado não entendo mas sonhei com teu quarto
éramos nenhum lá dentro de você lembro de tudo branco mas são as paredes quase amarelas
as memórias disse meu amigo dirigindo músico ao colocar contra o sol o óculos que lhe traz o passado
eu pelo menos devo estar sempre com essas lupas ou se bem que são luvas
de um tato pertinente e esvoaçado em se ter a lamber o próprio lábio

aprendi que o melhor modo de observar o céu é de uma cadeira giratória
o pescoço se recosta e ao contrário do mundo o pézinho dá o impulso

depois uma ferida sangra e eu agora tenho o hábito de passar o sangue em algum papel
caderno sulfite não importa eu guardo não sei bem onde quem sabe um dia a grande obra do meu sangue no papel nenhuma gota por poema não os poemas são mais limpos que o sangue e é o mínimo

sei que tenho um arquivo .doc com o nome de "gaveta" e dentro dele não há nada

agora depois vou lhe contar outra coisa acordo e fico vendo artistas e quem sabe é isso mesmo estão há anos luz dos poetas nós em galáxias tão medrosas e sabe 5.000 anos de escrita (é isso mesmo?) dão tanto a essa estante mas mesmo assim quando eu vejo as estrelas teimo mesmo em dizer que é a primeira vez que alguém pode, como eu, nomeá-las,

em segredo.

- - -

22.2.09

III. (agora que sou sincera.)

esse agora é para o breno

e dessa vez não foi o rodrigo que me atendeu. porque toda vez que eu vou ao correio é o mesmo rodrigo que me atende. é sério. eu já vou lá e digo 'alou alou rodrigo', meio que rima, né? ele percebe, não me entende direito, não acha graça. não sei bem qual é o QI do rodrigo que no mais parece as patas de um urso ( ww ww ww ww) . mas, quando tive que sair de lá na chuva, na semana do meu aniversário, o rodrigo me deu um saquinho pra enrolar o celular novo. chovia tanto que eu mal conseguia abrir os olhos. sabe, os cílios são mesmo pára-brisas, mas a chuva era uma torrente. eu fui chutando a água nas sarjetas. de um cano de um muro a água jorrava cheia de barro e eu espalmando a mão na lectospirose. sou forte, e isso é antes de tudo. feel the sound. foi aí que me lembrei que eu havia acabado de enviar pelo correio um poema que falava daquilo mesmo, da chuva escorrendo doce pelos seios das minhas pernas - "janeiro"- e poxa,

po-xa aquele dia cheguei em casa e consultei o dicionário de nomes próprios pra saber o que significava "rodrigo" e sabe, não significava nada. mas hoje lá, eu na fila pensando, alou alou rodrigo, o envelope rosa na mão, o rodrigo que sabe que eu peço pra ele colocar um selo de cada, e apitou o guichê pra que eu tinha que ir segui daí alou alou elaine, nada de rodrigo hoje, gente. a elaine beicinho. perguntei quanto tempo pro prioritário ela me disse '7 dias' eu quase 'como assim gente quem é que mente pra mim então?' porque o rodrigo sempre fala um número maior que isso porque eu sempre pergunto, porque eu sempre sei mas eu sempre pergunto, sabe como é, fila-guichê-caixa, a gente faz o que pode. fiquei tão atônita que a elaine já tinha colado todos os selos antes de eu pedir 'ah põe um de cada' que esse é o tchubirubi de selar o envelope rosa-rosa com selos. ah elaine, viu. daí eu olho pro rodrigo e ele com aquela cara de que viu um elefante voando só que era um passarinho.

saio do correio meio feliz. parece que a chuva não é dessa vez. fico bem contente porque não quero me molhar, hoje não estava tão quente como da outra vez e minha volúpia bem mais na calada da gravidade do que aquele incendião da chuva de outro dia feito a bahia. são paulo minha gente é são paulo. que deus a tenha.

e não é que passo na frente da Quituteira onde sempre passo quando vou ao correio e nem cogito mesmo comer algum daqueles doces enormes porque sempre penso 'ok, delícia, mas e o tempo pra me recuperar disso depois?', sabe, eu ando muito pelas coisas, 'body and soul'.

ok. ok. ok.

é dessa vez. estou feliz. olho a bomba de chocolate. bomba de chocolate me lembra uma doceria de Pinheiros, Pinheiros me lembra jogar uma bomba na cabeça daquele traste! foi então ah minha gente apareceu na minha frente um merengue cheio cheinho de chantilly. lembrei de ontem, que de madrugada queria chantilly? delírio. toda essa vida que é só sorte. pedi pra moça embrulhar. contei pra ela que tive vontade de comer chantilly de madrugada. ela falou 'ahquecoisa' meio sei lá atrás do balcão, por que o povo se assusta com intimidade, né?, adoro susto. um dia saio por aí de vampiro mesmo, daí vocês vão ver.

capa encarnada amor na estrada imensidão na jugular


enquanto isso não acontece, cheguei em casa com o doce.



dá pra não ser sincera?

e pensei, ah, isso sim que é o livro dos prazeres já me retornando! sucumbi, o mais possível, aos risos, o chantillly me entrando pelos narizes chupando todos os dedos com todo o amor das baratas ao açúcar e, com as janelas todas abertas, foi um ato de amor. depois bebi a camomila e depois também um café. quando o tempo for propício. tua carta que não chega. essas saudades.

19.2.09

mememememe

o sérgio me passou o meme, de abrir o livro mais perto que tiver na página de número 161 e copiar a quinta frase completa.

bem, o livro mais perto de mim é o cântico maior atribuído a salomão, na versão de fiama hasse pais brandão, que acaba na página 35. tendo que partir para uma segunda opção, tenho dúvidas se o livro mais perto de mim é toda mafalda, do quino, que retiro de possibilidade pelos quadrinhos?, então, depois fico em dúvida se é o medo do al berto ou entrevistas com antónio lobo antunes. portanto, como primo pelo universo em expansão, vou colocar dos dois,

al berto, opto pelo quinto verso, pois não há pontuação:

"não consigo dormir com esta ferida"

lobo antunes:

"Mas, normalmente, um plano é uma folha assim grande e está lá tudo escrito".

pois, repassando a corrente da sorte, trevinhos para os cinco: marcos, noah, breno, quel, sabina.

14.2.09

conclusões a ponto de partir

e, além disso, minha vida é sempre autobiográfica demais,

13.2.09

amor

vim andando de muito longe, pensando, pensando
é para entre os rochedos e o mar que o amor se vai?
ou é na vida sem lógica sentimental dos peixes?
uma casa em que se tirasse as paredes e o ar caísse sobre nós?

9.2.09

suíça, parte iii

o rapaz de Singapura era fotógrafo e havia morado na Califórnia durante dois anos. o inglês dele me parecia incompreensível. me fez muita comida, batatas, arroz, tudo bem temperado para alguém doente. uma noite na cozinha contou para nós todos que sentia que finalmente voltava a acreditar na vida. um australiano skatista que andava pelas estradas dos alpes como se surfasse, brincou com ele, alguma bobagem, e ele disse que havia se recuperado de um tumor no cérebro raríssimo e que por isso tinha vivido na Califórnia em hospitais e - - - silêncio-.

o menino de Londres era padeiro, e tinha trabalhado durante três anos para conseguir viajar durante um mês pela Europa. era ele, o das massagens. o mais bonito entre os três. e desengonçado. todo dia de manhã quando acordava sentava num lótus com as costas curvadas demais, olhava as montanhas, respirava fundo, eu tinha vontade de rir. não com as piadas ambíguas pra cima de mim, que muitas vezes me deixavam constrangida. olha que não é fácil. e ficou bravíssimo quando lhe disse que entendia muito melhor o inglês do Brad do que o dele.

pois, o norte-americano era ruivo e tinha diabetes desde criança e me lembrava o weeks muito pela delicadeza com se entornar nos próprios braços. gostava de música, bob dylan, cocorosie, antony e música africana, nem lembro. ficou enlouquecido pelo araçá azul. trocamos as músicas graças que em cada cômodo havia uma caixa de som diferente pra ipods e afins , além de uma sala com (bons) livros nas estantes (até roubei um murakami em inglês) e violões a disposição de quem quisesse e jogos e enfim, esse hostel de gryon, foi o melhor que fiquei.

e era capricorniano de dois dias antes do que eu, então enquanto tomávamos muito chá, ele me corrigia sempre a temperatura da água não-fervente para o chá verde, e me explicava o que ia estudar no phd em harvard de biofísica e falando de cinema ele nunca nunca nunca havia ouvido falar em fellini. - - - - - - - - -

quando lhe contei a respeito da idade das minhas mãos, me disse que eu tinha que escrever um poema que dissesse aquilo das ranhuras das digitais. (ele nem sabe que escrevi numa primeira menção e se chama "arrumação") mas ficou assustado. sabe alguém muito sensível que não sabe que é muito sensível? então, saiu pra andar. e voltou horas depois, com flores campestres. ramalhetezinho pra mim.

era a última noite dele lá, teve uma festa, por acaso. os dois outros tinham ido embora na noite anterior. sobramos, eu e ele, que me bota um cat stevens pra tocar e me pergunta se eu conheço? eu tento dizer todas as madrugadas da adolescência na casa do duda em uma frase e ele me fala dos sonhos do obama 2009 de como tinha virado cientista de que queria era ser ativista na áfrica de que sei lá o que a caça das focas e ouve essa, sweet baby james,

se senta do meu lado. então, logo ali meu telefone que servia de relógio e lanterna, já que há semanas não se dizia nada, eram quatro horas da manhã na Suíça, o telefone vibra apita, faz uma festa de mensagem de texto, caminha pela mesa. eu tinha certeza que era minha mãe, confusa com o fuso. mas não era. compenetrada no meu "disso não espero mais nada", que surpresa palpitada. e ele me pede pra que eu leia a mensagem em voz alta, em português mesmo. li, tomada de felicidade, também de que só eu entenderia em quilômetros e que aquela palavra ecoando pelos Alpes e sorrindo ele me perguntou o que significava a última palavra e eu disse, há muitas milhas de lá e olhando pra ele, a última palavra de uma mensagem de texto - - -

7.2.09

durante muito tempo acreditei que tudo acontecia numa mesma repetição de padrões, semelhanças, que vinham das minhas referências do passado e confirmavam uma triste sina de ser mim mesma. gostaria de me apagar por completo. não sendo possível, não sei qual brilho começou em onde, mas hoje, quando no presente enquanto vivo se vejo alguma semelhança com o passado acredito que tudo veio antes daquele modo para que isso existisse.

se isso não se chama amor, tem nome de esperança.

suíça, parte ii

chego em Gryon. miro as montanhas e as casinhas e me pergunto, provincianamente reiterada na minha centralidade: estarei eu em campos do jordão? visconde de mauá? quase pedi ao homem da estação 'por favor, retire-me o cenário e dê-me a paisagem'. e o albergue ficava lá no alto.

a mochila pesando infernos, o cascalho debaixo dos pés, o vestido preto no sol ai ai ai. mas eu estava feliz, tanto, que colhi umas florzinhas enquanto subia a encosta. a mocinha da recepção me diz num sotaque bem texas que pagando por quatro noites, ganhava uma quinta. disse a ela que por enquanto eu achava que só ia ficar uns dois dias e tudo bem. subi ao quarto,



estou, mais uma vez, morrendo de fome. mas a felicidade de me entregar a uma cama de madeira clara na minha frente com um colchão com essa vista, larguei a mochila no chão, deitei de roupa e tudo, dormi. dormi de tênis, meu. não sei quantas horas. me levantei já eram quase 17h, pensei, vou até a cidadezinha comer. e fui. chego lá me indicam que só há um restaurante, que é o da estação. vou até a estação.

o homem me olha muito desconfiado e não gosta que eu fale em inglês. é bonito, o homem, moreno. me dá o cardápio, eu peço um prato, ele diz que não tem. diz que não tem nada daquilo aquele horário e que eu posso comer sorvetes ou sanduíches. peço um sanduíche e um chá verde, ele imediatamente com a comida me traz a conta e fica meio na minha frente olhando a paisagem e fumando um cigarro. como, uma delícia o sanduíche e a mostarda, mas praquela cara emburrada eu não agradeceria nunca. vou olhar a conta já contando o dinheiro e está escrito "chez ribeiro". ah não tive dúvida, olhei pro gajo e disse, em português:

"você é de Lisboa?"

a cara de espanto dele.

me responde, com dificuldade:

-não, sou do Alentejo. how do you know?
-pelo sobrenome e o bacalhau oferecido no menu do dia.
ele sorri e me diz
-brasileira.
-sim, são paulo.
-estás viajando só?
-sim. você mora aqui faz tempo?
-sim, há quinze anos caso. vivo suíça trinta.

a mulher vem de dentro, fala com ele em francês, olhando feio pra ele. pra mim sorri, dissimulando. e sai pra rua, com umas sacolas e um menino. ele diz

-desculpa, que não mais falar essa língua

sério. ele estava perdendo a língua. por dentro da boca dele sumiam as conjunções, conjugações, e ele botava, sem nenhum constrangimento, o ar entre as palavras. aquilo me prendeu o coração. a língua natural ser essa? e estar se apagando da memória? uau. ribeiro, o gosto pelo bacalhau não havias perdido (há quantas se engendra uma vida?)!

e vejo que teria mesmo de cozinhar no hostel. desço ao supermercadinho, falo meu francês ridículo com a mulher, e me esbanjo em comprar: vinho, chocolate, queijo. tudo suíço. é na hora de pagar no caixa que sinto a primeira pontada. na barriga, subindo pelo pescoço, aquele calafrio. penso: é o ar condicionado. subo a encosta quase morrendo, a vista ficando branca, deixo as coisas na cozinha e bem,

o banheiro o vitral do banheiro o jornal do banheiro
minha vida na suíça quase que foi só isso durante seis dias.

quase. porque penso: morri. morri na cama. dormi dormi dormi. pensei mesmo que eu estava muito numa má situação no alto do mundo na suíça longe de qualquer médico que não custasse uma fortuna. e a febre subindo. no revisteiro do banheiro o guia local diz 'doctor' call 'helicóptero'. gente, que nada é só uma gripe, tomei lá o remédio chinês errado. cápsulas chinesas funcionam, sabe? esquentaram-me tanto que meu deus, meudeus. acho que, de verdade, só passei tão mal quando tive pneumonia.

e já estava lá me vendo morta mesmo de pobre num helicóptero cruzando os alpes, acenando mãezinha em suíço quando noite alta entram meus vizinhos de camas no quarto. três homens. mais pra meninos, em fato. o brad de boston, o mark de london e o marcus de singapura. me percebem doente, e, durante quatro dias, me oferecem: chá, comida e massagem nos pés. -- - - é sério.

5.2.09

suíça, parte I

antes estava em avignon em direção a encontrar com a anna em budapeste. portanto, entre uma pessoa e outra com quem queria estar, havia ainda a suíça e a áustria.

num cyber café gritante, em que a ilana ganhou umas cinquenta coisas de graça, escrevi para a anna, que eu ainda não conhecia, dizendo que iria me atrasar dois, três dias, porque avignon estava uma maravilha e ainda passaria algum tempo em zurich e viena. depois anna me escreveu dizendo que ia me matar, e eu, ligeiramente magoada, continuei com meus planos. depois fui entender a Hungria, com ela mesmo me dizendo que isso se dizia pra qualquer um.

então, cheguei de avignon em genebra, já sozinha. genéve. o primeiro controle de fronteira que passei por terra. paravam os negros, chicanos, indianos. meu passaporte brasileiro e essa cara branquela nem nada. das poucas situações em que um olhar é mais preocupante do que a falta dele.

estava, juro, o pior calor de todos. minha mochila pesava infernos. eu já havia deixado em madri um guia de viagem, quatro blusas, uma calça jeans. não sabia mais o que soltar. além do calor, andando pela avenida a caminho da estação até o albergue duas coisas me impressionaram de cara na suíça: a quantidade de árabes em carros conversíveis e as lojas de equipamento de caça exibindo rifles enormes nas vitrines, instrumentos de pesca e até um -isso, se não fosse o teclado esdrúxulo, eu quis muito- um laptop com gps e a prova d'água. imaginava-me anos depois, vestida toda de cáqui, os jacarés mastigando meu laptop wi-fi no pantanal e eu em cima do bote amarelo recuperando-o numa pescaria, intacto.

deixei o inferno das costas no albergue. é assim: felicidade é isso. era domingo, tudo tão fechado e quente, comi carne de porco num restaurante chinês com varanda, andei andei andei andei até a sala de concertos da cidade, fechada sentei-me numa escadaria e percebi que eu estava muito muito cansada. de um jeito assim que não me lembrava outra vez. ao lado um prédio de mármore branco muito antigo e dentro dele uma festa tocando salsa com gramofone em castelhano. um homem me acenou da janela. acenei de volta. ele saiu da janela como se viesse. levantei-me e fui embora.

no meio do caminho apareceram as papelarias de lápis de cor, os chocolates, o rio. fiquei embasbacada, o reno enorme, uma fonte no meio dele lançando o arco-íris, no sol turistas vermelhos comendo algodão doce, um parque de diversões instalado para bochechas em cada margem e os árabes passando com suas burcas e ferraris. fico vendo o reno. de repente, meu deus, CISNES. cisnes ao natural, embaixo da ponte, a água mais cristalina do universo.




agora que vocês entendem que não é mentira
vou mostrar como vi mesmo um pato nadando contra a corrente
(como na música do cazuza:
só pra exercitar
todo músculo que sente)






sábio patinho. me dê de presente seu bis.

além disso, me constrangia demais a riqueza daquele lugar. genebra foi dos lugares mais absurdos em que já estive. eu me lembrava tanto do sertão da bahia, mas estávamos na suíça, eu e o pato, um lugar onde eu nunca havia me imaginado antes, ainda mais com tanto calor. e os árabes muitos árabes mesmo. parecia quase que não havia suíços, eram todos vindos de outro lugar, migrantes, milionários e os rifles. passei na frente de um mc donald's entrei na fila fiquei indignada que justo na suíça os milkshakes fossem só de morango ou banana. e eu já estava lá, comprei um de banana, pra experimentar. aquelas coisas que você não deve fazer na vida, nunca. mas né,

voltei pro albergue, tentei descarregar umas fotos pra postar no flickr, a merda do computador perdeu umas vinte, eu estúpida havia apagado, sei lá, deu tudo errado, fui dormir e antes comi meia barra de chocolate suíço. no quarto fiquei conversando com duas meninas espanholas que me encantavam por dizer "pueblo" como "vilarejo" e depois não consegui dormir porque elas não paravam de falar. fazer o quê? mandei umas mensagens pelo telemóvel português, me lembro da luzinha, não do que escrevi.

acordei e pensei: que budapeste que nada! eu vou é subir pros alpes. e fui, pensando, passo lá dois dias, nessa vida o que é isso?, a anna que me espere e eu vi os alpes, vejam. abri o guia, e escolhi: gryon, porque era o menor vilarejo que se anunciava por ali.

e na estação de trem de genebra:






lia na minha frente enquanto ia fumando meu cigarrinho enrolado. estava fumando loucamente. loucamente mesmo. o tabaco tinha começado como uma participação aditiva em Lisboa, mas tinha virado uma centralidade de um passar de tempo. quem fuma ou já fumou, sabe como é. é bom pra cacete. eu não fumo. mas fumava ali, em genebra, aprendendo que a suíça tem o maior índice de suícidios com armas de fogo pelo mundo. por que será?

então, no trem, a caminho de bex, entrei no vagão errado, tomei bronca de estar na classe errada, conversei com uns coreanos - são tantos nesses trens os coreanos pela europa, depois conto um de veneza-
e quando consegui me controlar, joguei i ching vendo

a paisagem suíça no verão:




as crianças suíças no verão:




o pacifismo suíço no verão:





- - -

o amor atrás da porta

toda paixão é uma transformação. quando a gente morre através dela é que se vive, viverá. quem não vê ou cerceia isso, está perdido. é de rir dessas pessoas. eu mesma já usei muito a psicanálise contra mim mesma, contra instintos, desejos, mistérios. fico sempre muito tempo a querer dizer sim ou não, opondo realidade e ilusão. esses termos. tantos os matizes. em quantas se engendra uma consciência. hoje ando a meia-sombra, do lado ensolarado da rua mas no escuro das copas das árvores. sei quem sou muito mais: não defino bem.

mensagem pra lhe dizer: 'abraça uma andorinha. que vive em ti em você? se não fosse o coração dos animaizinhos eu estava tão sozinha, então escuta, tão rápido e: a explosão da tua alegria é lindo. e depois fico pelo buraco da porta a espiar que ninguém sobe a escada. encosto abertas as palmas da mão. me calo. a madeira respira por mim. não, não é a causa da Andorinha. abrace a própria. a porta, a andorinha, a longitude. há corpos de madeira e no nosso há de ter carne com a carne. escolhemos? repito: a explosão da tua alegria é lindo. com instintos farejam e comem nossos medos em equações. sobram os ossinhos do medo entre as ervinhas. com eles fazemos um relicário em cetim cor-de-rosa, pousamos juntos aos nossos pés, aliados.'
isso porque agora entendo o homem da festa de Paris exclamando para a namorada: "o amor é uma guerra!?! é sim, mas é uma guerra que se luta junto." e ela, que era mexicana, quase atirou um vaso na cabeça pra que ele ficasse quieto, e lhe deu uma bebida, um beijo estalado, e disse "basta de filosofia". riram. isso foi na casa da menina que tinha o mesmo poster do que eu, esse aqui na porta, xxxxxx se chamava ela. e me disse que por amor nunca tinha acreditado que faria uma coisa daquelas, viver em San Diego com um bibliotecário surfista,
amor por amor por amor por
a explosão da tua alegria é lindo,

no mais, deixa doer mesmo e continua sempre alegre. o lado escuro do ensolarado, se lembra? o nariz que sangra. desconfia de si mesmo, mas afirma. quer o que quer, mas esquece.

fico tanto sem escrever às vezes que tenho que dizer essas bobagens diretivas. é a falta de auto-contato. se bobeio um dia, pronto, tomaram-me os de fora,

 

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