31.12.06

lendo o "noticiário da realidade" percebo que não há descanso: a cidade está submersa, os escanfandristas afogaram-se petrificados em sentinelas roncando o sono dos mil anos. estou sentada na prateleira, faiscando o silêncio de mim o barulho que vem da rua aumenta. ainda não são os homens jogando as cartilhas fora, nem o som do seu carro chegando para me enternecer. estarei esfumaçada, a delirar? como num consolo, levo minha mão a cabeça, enquanto noto o ombro descolando da parede e as costas voltam a ser minhas. respiro, guardo o ar quando a água encontra meus pés. encolho os tornozelos procurando o ângulo para de dentro do aquário molhar-nos aos poucos, espalhando a água pelo corpo, meu bem, o corpo de fogueira, o rio nos envolvendo, o mar está em toda a parte. a partir de então só correríamos da falta de sertão.

(estamos próximos da virada do ano, o tempo se expande. eliot conta da serragem nas cascas de ostras. acumulando fuligem, salsugem. saudades do marulho quando era só estrondo de mar?)

esfriou com a chuva desses dias, vou pegar o casaco verde que ganhei de natal.
e que surpresa! dentro do armário encontrei-me aquela apodrecendo. da minha boca saem peixes, estou cheia deles, sou os peixes transbordando. resolvo pelo anzol goela abaixo, é muito o esforço, muito. até que da pescaria arranco um imenso tablado de tecido que, bem disposto, encobre a malha fina de asfalto da cidade inteira. "oito milhões deixaram são paulo em direção ao litoral brasileiro, quatro milhões em direção ao interior e dois ao exterior do país." agora de longe se vê a terra extensa onde os urubus passeiam a tarde toda entre os girassóis, uns bois vêem os homens que entram pelos arcos do rose-garden e retiram o pó das rose-leaves.
exausta, no início da noite chego em casa depois de olhar os rebanhos. é verão, me espreguiço na varanda próxima da rede, observando toda a extensão do meu latifúndio, com a atenção de buscar com os olhos o som das mariposas na calha.

30.12.06

retrospectiva

foi a época em que não se tirava mais o mofo do guarda-roupas. estava seco, semi-cerrado. olhava para o areal desse computador ruídoso comendo com as mãos essa farinha sem sal. apareceram médicos com grande aparelhagem para me recomendaram primeiro o sono; tentei o hábito, mas quando a insônia mandou, me propuseram as caminhadas; com as pernas pesando, obrigaram-me a morar para dentro do armário. ficava olhando a pesada porta da frente, azul e aristocrática, que de madrugada tomava um aspecto imenso crescendo dentro das minhas pálpebras apertadas. os anos, os meses foram atravessando o peso moldando minhas costas de caixa. estávamos a sós e não sabiamos, eu, a terra deglutida e os ombros de pedra, mas como não havia nada que se agarrasse em nós, se saissemos do cubo, arderiamos debaixo da cama da outra. ou viajando num banco de ônibus dos passageiros duvidariamos: há coisas do mundo que não são eu?

(muita coisa aconteceu sem pausa)

descobriram no quênia novas constelações nunca avistadas, que começaram a ser nomeadas. conheci, assim, os nomes de dois amores. foram dados os nomes. foram estudados os nomes. foram alardeadas as faltas de nomes. há e não há.

os meses foram entrando, os dias um a um sempre tão diferentes, como se cada fosse todo. a tranqüilidade começou a gostar dos dias. primeiro noto os contornos das minhas mãos se separando da madeira, a direita toca a superfície da maçaneta azul e noto as palavras voltando. os nomes se recriam em sentido e rima. esse som vem de lá até mim? da onde vem? começo a me perguntar: será chuva que ouço vir de mim? gota gota, como se de água o peixe se alimentasse, enquanto aos homens se devolve o ar. com meu traço de fidelidade à raça dos rituais jogo-me ao fogo

(estamos próximos da virada do ano, o tempo se contraí. penso na morte, não haverá tempo, tempo haverá? onde estão as peças do mundo em pedaços de desconhecido?) .

22.12.06

me segura que eu vou dar um _(no data)_



waly salomão, que deus o tenha.
acordo, durmo, fico. é assim desde que eu decidi que se faz de mim o corpo. nunca mais esquecê-lo, o efusivo e confortável que me pede: o que fazer com o movimento?

21.12.06

"Sobre o delegado do condado- pois nesta história só vou falar dele de passagem- basta dizer que era grande romancista. Trabalhava havia meio ano num grande romance sobre a sociedade que era, com certeza, muito interessante, embora ninguém pudesse lê-lo, pois durante a redação o delegado tinha um hábito bem pouco prático: escrevia o romance inteiro num único pedaço de papel. Ao começar, preenchera toda a página. Depois, em vez de prosseguir em outra folha, tornou a escrever do alto da página cheia. Em seguida, ao chegar ao fim do papel, continuou uma vez mais, imperturbável, na parte de cima. Quando me mostrou o romance, ele o escrevia havia seis meses. Se levarmos em conta que escrevia de seis a oito páginas por dia- sempre e apenas na mesma folha-, o romance devia ser verdadeiramente longo. No papel, não havia mais sombra de escrita. Transformara-se simplesmente num papel preto, como se o tivessem pintado. Apesar disso, o delegado seguia escrevendo, feliz e sereno, todos os dias. Esse manuscrito não é invenção, mas um fenômeno na história da patologia. Anos atrás, quando contava essa história em público, eu às vezes acrescentava observações engraçadas, como por exemplo: "Seria interessante recomendar essa técnica a muitos escritores". Mas desde então descobri que o fato em si tinha muito mais beleza sem comentários desse tipo. Seja como for, não há mal em tê-lo relatado, pois é indissociável do cenário de onde o poste de vapor se pôs a caminho."

em O poste de Vapor, de Ferenc Molnár.

10.12.06



Mas eu espalharia macadâmias nessa lembrança em pontas de navalhas
fincadas nas tábuas da sua mesa, como se no seu pulso em laços amarrasse, os fios do meu cabelo, os restos no seu rosto,
e o meu pulso, tão sem receio, silenciasse.

9.12.06

A morte
Para Yvan Goll
A morte é uma flor que só abre uma vez.
Mas quando abre, nada se abre com ela.
Abre sempre que quer, e fora da estação.

E vem, grande mariposa, adornando caules ondulantes.
Deixa-me ser o caule forte da sua alegria.

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Retrato de uma sombra

Os teus olhos, rasto de luz dos meus passos;
a tua testa, lavrada pelo brilho dos punhais;
as tuas sobrancelhas, orla do caminho da tragédia;
as tuas pestanas, mensageiros de longas cartas;
os teus cabelos, corvos, corvos, corvos;
as tuas faces, campo de armas da madrugada;
os teus lábios, hóspedes tardios;
os teus ombros, estátua do esquecimento;
os teus seios, amigos das minhas serpentes;
os teus braços, álamos à porta do castelo;
as tuas mãos, tábuas de juras mortas;
as tuas ancas, pão e esperança;
o teu sexo, lei do fogo na floresta;
as tuas coxas, asas no abismo;
os teus joelhos, máscaras da tua altivez;
os teus pés, campo de batalha dos pensamentos;
as tuas solas, criptas em chamas;
as tuas pegadas, olho da nossa despedida.

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os dois do Paul Celan, traduzidos pelo João Barrento, em A morte é uma flor.
vivi uma vida qualquer. para alguns, fui sem ir. para a maioria, passei numa ausência. você sabe, também, que se lembram pouco de quem não sabe cozinhar. mas do lado de cá, aprendi novas estruturas que tornam qualquer pato ao curry uma bobagem sem limites para a curiosidade ou o gosto.
por exemplo, pela intolerância que o homem tem com o que voa, nos filmes nos fazem ver de cima quando a vida acaba. eu gostava muito de cinema, ainda mais os que começavam logo pela morte de alguém, aquele gramadão imenso, mulheres de negro com guarda-chuvas e véus. mas o sentido correto é que vemos de baixo: não quero entrar em detalhes, mas do lado de cá: tudo é transparente: a terra, a água, as cinzas.
tudo é penetrável e novo.
minha mulher cobriu o caixão com a bandeira, cheia de medo das vizinhas notarem que ela a usava, desde os anos da minha impotência, como o pano de prato com o qual enxugava as canecas mais finas. é a louca pela louçaria!
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a tal da fita-amarela, gravada com o nome dela, não levei. não houve muita prudência no gesto da despedida.
 

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