13.9.08

gerar

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descobri uma poeta na fnac dessa Lisboa
Wislawa Szymborska
em tradução de Elzbieta Milewska e Sérgio Neves

UM NÃO ACABAR MAIS

Sou quem sou.
Um acaso inconcebível
como todos os acasos.

Outros antepassados
poderiam, afinal, ser os meus,
e então de outro ninho
sairia voando,
de debaixo de outro tronco
rastejaria, coberta de escamas.

No guarda-roupa da natureza
há trajes de sobra:
o traje de aranha, da gaivota, do rato do campo.
Cada um assenta de imediato que nem uma luva
e usa-se obedientemente
até se gastar por completo.

Eu tampouco tive alternativa,
mas não me queixo.
Poderia ser alguém
muito menos individual.
Alguém do cardume, do formigueiro, do enxame zuninte,
uma partícula da paisagem agitada pelo vento.

Alguém muito menos feliz,
criado para dar a pele,
para a mesa festiva,
ou algo que nadasse sob a lente.

Uma árvore presa à terra,
da qual o fogo se aproximasse.

Um mero cisco esmagado
pela marcha dos acontecimentos inconcebíveis.

Um indivíduo nascido sob a estrela ruim
que para outros seria boa.

E o que seria se despertasse nas pessoas medo?
Ou só aversão?
Ou só piedade?

Se não tivesse nascido
na tribo certa
e todos os caminhos se me fechassem?

Até agora, a sorte
mostrou-se-me favorável.

Poderia não ter-me sido dada
a recordação dos bons instantes.

Poderia ter-me sido negada
a tendência para comparar.

Poderia até ser eu própria
mas sem o dom da admiração,
quer dizer- alguém completamente diferente.
- - -
da onde da capa do livro Instante
anotei a seguinte legenda:
13 de setembro de 2008
Lisboa.
Num dia que havia de tudo para ser terrível e triste e há uma particular alegria a imprimir seu selo nas nuvens. E essa poeta que agora descubro me surpreende e refaz, espero, a escrita e os tecidos, de um sempre para agora e adiante
numa avaliação ágil do passado
só belezas e estruturas
de conchas marinhas
feito nádegas de uma deusa menina
avançada em técnicas de não ter técnicas
e de se apaixonar por estátuas e amuradas
e neste Pavilhão Chinês onde me bebo de chá
passa o homem de terno bonito
de azul clarinho de linho
e diz a palavra, a frase:
«ela tem uma técnica», logo no momento posterior do que eu escrevi «técnica», pela 2a. vez.
há e não há
o acaso
a realidade
o amor.
- - -

CONTRIBUTO PARA AS ESTATÍSTICAS

Em cem pessoas,

sabedoras de tudo melhor-
cinquenta e duas;

inseguras a cada passo-
quase todo o resto;

prontas para ajudar,
desde que não demore muito-
quarenta e nove;

sempre boas,
porque não conseguem de outra forma-
quatro, talvez cinco;

dispostas a admirar sem inveja-
dezoito;

constantemente receosas
de algo ou alguém-
setenta e sete;

aptas para a felicidade-
vinte e tal, quando muito;

individualmente inofensivas,
em grupo ameaçadoras-
mais da metade, com certeza;

cruéis,
por força das circunstâncias-
é melhor nem sabê-lo,
nem aproximadamente;

com trancas na porta depois da casa roubada;
quase tantas como
aquelas que têm, antes da casa roubada;

não levando nada da vida a não ser coisas-
quarenta,
embora preferisse estar enganada;

agachadas, doloridas
e sem lanterna no escuro-
oitenta e três,
mais tarde ou mais cedo;

dignas de compaixão-
noventa e nove;

mortais-
cem em cem.
Número, até agora, não sujeito a alterações.

4 comentários:

ilana disse...

hmm, esse das cem pessoas é um azulejo de formica do café do sesc avenida paulista
beijuju

agente laranja disse...

a gente devia capturar as vinte e tantas pessoas aptas para a felicidade e reproduzir em cativeiro para melhorar as estatísticas.

Sérgio disse...

Curioso, Júlia. O polonês escreve em português? (o que não é tão absurdo, pois dizem que há muitos poloneses e romenos em Portugal agora...)

júlia disse...

sérgio,

é uma polonesa. se trata de uma tradução portuguesa. coloco a referência dentro em pouco. sou péssima. assumo.

lui,

concordo e recordo que você tem razão.

ilana,
medescabeloporvocêonega

 

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