25.3.08

Como a casa de Asaboli não tinha jardim, só um entorno cimentado, com o chão coberto de placas de cerâmica vermelha, era no meu que revelávamos os corpos ao desenho do mundo. O relevo do terreno era uma grande bacia, a entrada da rua o ponto alto de um lado, onde logo ficava a casa, grande e toda de madeira envernizada, projetada com o fundo suspenso no declive. A fachada da frente era sóbria, para não dizer protegida e séria e a única janela era o vitrô da cozinha, um grande retângulo comprido na altura dos olhos de um adulto e, no segundo andar, o vitrô do banheiro do quarto do pai, todo branco com banheira. Para o fundo se voltavam os outros dois quartos, o meu e o da minha avó, e embaixo a extensa varanda que continuava a sala envidraçada, um alpendre suspenso em toras, da onde se tinha toda a vista para o jardim. O quintal era enorme, coberto por um extenso gramado em declive, até onde começava um fio de água (que nascia logo ali, num amontoado de rochas de um jardim vizinho) e, depois dele, o terreno dos fundos subia em morro de novo, repleto de marias-sem-vergonha crescendo em liberdade vigorosa pelo barranco. Entre essas vegetações rasteiras, algumas palmeiras de coquinhos amarelos, um pau-brasil que muito me orgulhava por cultivarmos uma espécie em extinção, uma enorme figueira elástica e muitas árvores indistintas, com uma ou outra bromélia escancarada, onde habitavam rãs e, entre as folhas caídas no chão, um pássaro morto, era azul e caiu do ninho, doído, estatelado no chão. Eles próprios, os animais, não continham um pouco de nós dois nos hábitos e gestos?

Era subindo e descendo os relevos do jardim, numa fascinação iluminada de criança, que explorávamos o território do mundo, um monte de barro de cupim virava os Andes, os Alpes ou o Monte Pascoal; escorrendo da calha uma água velha era um rio enorme em direção ao córrego, que, em comparação, ganhava o nome de Atlântico. Um dia colocamos no seu curso caravelas em barcos de papel e, quando o Brasil estava sendo descoberto, os barquinhos todos afundaram com a tempestade de verão. Num pulo qualquer, Asaboli virava a princesa Isabel, que por simples confusão histórica, mandava decapitar todos os que se opusessem aos brioches e croissants no café da manhã. Era a civilização da menina que gritava, ela que adorava maquiagens, pó-de-arroz, cheiro de coisas doces. Asaboli gostava minuciosamente das coisas, sem explicação. Já eu, sempre estive no mundo como aquele córrego, feito essa lacuna, entre a continência civilizada e a selvageria inconsciente.


(outro trecho da história do antonio, ainda sem título, work in progress, no caminho)

6 comentários:

sabina anzuategui disse...

Não descobri como encontrar os posts com marcação... fiquei meio perdida para comentar o texto, sem referências. Gosto desse nome, Asaboli. A descrição parece boa, mas o problema de descrições é que elas são sempre incompreensíveis. Mesmo no Proust... eu entendo duas ou três frases, depois me perco. Talvez o espaço não possa ser descrito, a não ser por mínimos detalhes. Realmente não sei como agir quanto a isso.

sabina anzuategui disse...

Por exemplo, pra me explicar melhor: "entorno cimentado, com o chão coberto de placas de cerâmica vermelha"... Mas o chão é cimentado ou tem cerâmica? Compreendo que, na tentativa de descrição, as duas informações parecem importantes. Mas, como leitora, eu me confundo. A imagem se perde entre o cimento e a cerâmica. Quando reviso meus textos, encontro várias frases assim, em que os detalhes se embaralham. Depois entro numa paranóia de querer limpar tudo. O que é impossível também. Ah, merda... espero não passar essa paranóia para você, rs.

Érico disse...

Uhu que lindo.

Anônimo disse...

gostei.

júlia disse...

sabina,

sorry, meus posts não têm mesmo marcação, nem sei porque disse aquilo. o uso que faço da internet convive com uma necessidade de exposição e outra de ocultamento.
talvez isso também me faça não dar maiores referências ao trecho. sensação de que escrever aqui faria com que me sentisse compromissada. e do compromissada ao presa pode ser num piscar. veja, tenho pudores, mas acabo contando tudo.

como leitora, também sou do tipo que duvida de descrições, mais ainda, pula.

porém, escrevendo me atenho bastante a elas. a maior parte das memórias que tenho são cenas visuais dos espaços em que já estive, mas que, atualizados no pensamento, estão vazios. por isso, talvez porque me sinto presa nos territórios passados, eu precise descrever os lugares que narro.

também existe uma simbologia nas descrições, seja ela social ou que funcione dentro de uma lógica do texto, ou do personagem. é claro que num trecho isso se perde. e se isso vai ser lido do jeito que imagino ou não, já não sei. talvez por alguns. não sei exatamente onde termina e começa a possibilidade de controle.

por exemplo, uma experiência corriqueira, que você já deve ter tido, ontem, mostrando uns capítulos para o meu amigo aí debaixo, ele viu uma metáfora onde não tinha. simplesmente consenti que ele estava certo, apesar de não conseguir nem imaginar da onde ele tinha tirado aquilo. então, o óbvio: cada um faz um ato diferente de leitura.

(aliás, ele é um leitor alucinado por descrições espaciais, que salvação)

quanto a parte que você citou como exemplo, você tem razão em marcar a ambigüidade e eu agradeço, às vezes de tanto ler e reler me acostumo e, sem estranhamento, não há como fazer correção. eu pensava no cimentado não como o material cimento, mas como o contrário de chão de terra. para desfazê-la, re-escrevi assim: "Como a casa de Asaboli não tinha jardim, só um entorno a céu aberto com o chão coberto de placas de cerâmica vermelha," etc

e, claro, me-ni-na, já sofro da mesma paranóia que você diz! haha acho terrível, porque vira o estranhamento puro. de repente começo a cortar cortar cortar cortar, apagar os traços, limpar tudo mesmo. ainda mais nessas minhas caudalosidades.

acho que pode ser bom. mas é preciso resistir quando isso é fuga ou delírio, eu acho, sabe, sabina? primeiro porque eu não necessariamente melhoro com o passar do tempo, quer dizer, talvez antes de ontem eu estivesse escrevendo melhor do que daqui um mês e assim, pode ser melhor ficar com a primeira versão.

no mais, acho que as imagens não se perdem se há simpatia, ou na escrita, ou na leitura. e, afinal, minha experiência de texto é muito cumulativa. agora, o que faz um texto criar simpatia nas pessoas, bem, isso ainda estou tentando saber,

obrigada pela sua opinião. é muito bom falar com você, que escreve.
- - -
érico,
uhu que bom.

- - -
berimba!
nossa, você apareceu, menino!

vina apsara disse...

adorei a apresentação do narrador, que você segura até a última frase, tornando esse fim (provisório) forte e largamente elucidativo.


ai, como eu sou pedante e anti-lírica! =P

 

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