20.9.06

bildung

Imaginem que eu sou uma velha. Não deve ser difícil, mas faça com precisão: você que tantas vezes se deixa atordoar pelos passados, para nossa empreitada esqueça-os: os velhos deliram menos que nós ou já se acostumaram ao surto.

Antes de ser velha eu tinha uma salvação sonora recorrente: a pela palavra: abismo. Nessa época eu imaginava que como o futuro gostava de mim, ia guardando num baú as especiarias que me destinava, e se não tinha acontecido, era uma questão de ainda não ter saído do fundo da caixinha. Mas fui envelhecendo, comecei a perceber o pó atrás dos móveis, a geografia física das cidades por baixo do que há foi me atrapalhando, já que tudo o que está é uma superfíce construída como uma película em cima da terra, uma capa zás-tras, que se a arrancarmos junto com as tubulações de água suja, teremos um campo desértico, em que oliveiras e esquilos um dia se levantarão para depois fenecer? ora, deixo de bobagem, uma cidade arrancada produziria muitos destroços, palavra que os velhos de ouvidos limpos não podem ouvir. Sou velha, sei que a natureza é cruel e a doença uma lógica da pior espécie. Não posso adoecer e por isso não estanco. Por exemplo, aos domingos, esse dia do qual gostamos tanto, rego as hortênsias do meu vizinho, o seu Atílio, para quem presto favores desse tipo há anos.
Depois que parei de querer o que eu não queria, veio a maturidade que me trouxe o desatino, o ceticismo e toda espécie de cobranças em códigos de barra. Já na velhice me encontrei num desacerto cotidiano, como um tictac que não te deixa dormir, estava certa agora: de que eu iria morrer. Era necessário tomar medidas drásticas. Joguei fora a balança, liguei para o corpo de bombeiros e terminei meu affair de anos com o chefe da estação, ele chorou mas eu não me arrependi. Só me viam na vida dele, mas ninguém o via na minha vida. Comecei a escrever para não me preservar mais do sofrimento, para causar a linguagem máculas sem arrependimento. Voltei a usar sapatos de salto, menos pela elegância do compromisso social, mais pela capacidade daqueles calçados de me re-estabelecerem o tônus nas pernas. Meus netos gostaram, me disseram que eu "continuo em continuidade", ou algo do tipo "forte", mas minhas filhas pensaram que era só um modo meu de tentar não ser viúva. Eu só amarrei a boca e continuei usando minhas pernas torneadas. Mas como era só um simulacro de força, cai do scarpin preto que ganhei de natal. E agora fico pensando como eram bons aqueles tempos em que o rádio era só esse aparelho que presentearam à minha cabeceira desde que quebrei o fêmur, e fico aqui deitada, sem poder regar as hortênsias do seu Atílio.

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"O coração já não pode mais. Entre os bichos e as plantas, acontece-lhe dizer: Que fertilidade!- e a vida corrompe-se nos próprios fundamentos. Sente-se como um apóstolo sem fé. Desejaria morrer, arder no fogo apocalíptico das cidades. Ou ser devorado pela inteligência, estiolar de excessiva lucidez no meio da loucura campestre. Tradição, compreende uma: ama-a. Perdeu o nome, essa sabedoria. Beleza, é pouco. Verdade, é muito. Trata-se de um termo sutil que participa de uma e outra, que se tornou inútil, insensato."
Herberto Helder, em "Holanda", d' Os passos em volta.

Um comentário:

Anônimo disse...

oi

 

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