Na minha antiga casa, melhor dizendo, no meu quarto & banheiro da antiga casa, habitava comigo uma lagartixa gorda. Era a Fonseca, de cor entre o bege e o flicts e umas três pintinhas pretas pelo corpo. A Fonseca fazia com que eu não conseguisse entender como tem gente que tem pânico, terror, delírios, uuuu, com lagartixas. A querida da Fonseca nunca me sacaneou aparecendo no meio de uma camiseta jogada, perto do papel higiênico ou coisas desse tipo. Mais do que confidente, a Fonseca uma vez foi minha vidente: okei, eu gostava da Fonseca, mas durante uns tempos ela teimava em aparecer perto do meu nariz bem na hora em que eu estava acordando. E todo mundo sabe que eu acordo com rinite. Com isso ela me fez arrastar a cama pra posição de um ano anterior, debaixo da janela, que às vezes ventava demais e piorava a rinite, mas, embora eu nunca olhasse, dava pra ver a lua. Antes da iluminação que a Fonseca me obrigou, eu vivia dias tristes, mas foi graças a mudança da cama que reencontrei, minúsculo, o rabisco na parede, grafite na cabeceira:
amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer
***
Mas engana-se quem pensa que eu dava atenção demais à Fonseca. Era mais que um dever karmico, afinal, não era a primeira vez que uma lagartixa se envolvia com o Drummond na minha vida. Uns anos antes, no 1o. colegial, eu encontrei entre uma Obra Completa e um Hermann Hesse uma prima da Fonseca, seca de tão morta. O estado de fóssil que se encontrava a literata lagartixa mostra que meus hiatos com a literatura não vem de hoje.
***
Vocês sabem, na sala da casa dos meus pais tem um relógio de dar corda do fim do XIX. De meia hora ele toca dlom-dlom e a hora cheia ele toca conforme, né, 4 é dlom-dlom dlom-dlom dlom-dlom dlom-dlom. Ele não vive em 16h. Uma vez de queixo no chão eu sabia quantos minutos tinham passado por uma somatória absurda entre o tic-tac e os dlon-dlon. Acontece que o relógio quebrou. Como em toda casa que se preze, as coisas naquela demoram a ser consertadas, mas não dessa vez! não foi assim. Afinal, com o relógio parado como mamãe iria sair seus habituais 15 minutos atrasada? E meu pai, como iria tomar banho todo fim de tarde? Sendo assim, em dois dias o relógio veio parar aqui, minha avó-resgate levou pra arrumar e uma semana depois, neste momento, o relógio repousa deitado na mesa atrás de mim, esperando que venham buscá-lo. Eu bem conheço as propriedades do tempo e, se não fosse o plástico bolha, eu talvez volteasse os ponteiros sem fim. Ou, melhor? avançaria até dezembro, quando tudo isso já vai ter ido tarde e, quem sabe?, o sol se põe na minha frente sem relógio, no meio do mar da Bahia.
***
Enquanto o relógio e a Bahia não se reúnem, hoje me apareceu outra lagartixa em cadáver, só que dessa vez fresco, produzido pelos gatos-mofados. Fiquei estática, afinal eu só queria jantar e tinha um morto no chão da cozinha. Bravamente peguei um monte de papel higiênico, mas senti aquele asco de não saber no que tocava. Deixei o papel de lado, olhei fixa, do fundo. Peguei. Era mole, mas não se desfez. E levei os restos da lagartixa até o lixo na palma da minha mão direita, sem nenhum terror. Sou bem firme, afinal, tinha vida na morte da lagartixa e bem, a vida tem que ser de frente.
(ainda bem que antes do meu H. tenho um J. e não um G., né?)
4.10.05
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7 comentários:
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
Eu gostei muito...
Num dos filmes dos Trapalhões (acho que o da Galinha dos Ovos de Ouro), havia uma música cantada pela persoangem-lagartixa que pontificava: "ixa, ixa, ixa".
lagartixa-ixa-ixa = sanduíche-iche?
enfim...
gosto de lagartixas. são bonitinhas, limpinhas, e comem baratas. nunca mato lagartixas, nem aranhas; elas fazem o trabalho sujo por mim.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Com a paródia de que na internet perdi muitíssimo, muitíssimo tempo de semear.
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gentileza vossa, alteza. (aqui a senhorita pisca.)
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a senhorita espera que o peixe apareça mais e sempre. hmm, acho que vou almoçar sushi.
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você, como um bom vegetariano, tem esse respeito aos bichinhos, márcio.
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uau. desses clássicos eu lembro bem só do 'lua de cristal', da xuxa. que a música era "tuuudo que eu quiser/ o cara lá de cima vai me dar/ etc".
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eu também, adoro. mas é o amaro, meu gato, que faz delas o seu parque de diversões prediletos.
viu viu, te falei que era bom.
é que eles são amiguinhos e querem meu bem, né, evitz? que nem ocê, né, foffigna.
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