22.6.07

I don't want, no I really don't want
To be John Lennon or Leonard Cohen

para c.

sempre as janelas e os quartos, adensados nas paredes que a memória divide com a vontade de fugir. era pequena, menina de lágrimas enormes sempre que montava a mala, uma trouxa de roupas com bolachas de água e sal e tirinhas do calvin.

one night i saw a mexican film pela janela
a casa do vizinho:
um delegado prostituído que tudo o que fazia com a vida se sintetiza na encoxada na empregada no fogão. botava para ouvir um disco de hinos no dia da independência do brasil.

não havia saída.

existia era um telhado, entre os muros das casas de planta quase igual, a outra acentuadamente mais cimentada que a nossa, muito tapete de grama verde sem folhas por cima. eu caminhava pelo telhado, atravessava da janela do meu quarto para a janela do quarto do meu irmão. era uma grande façanha para uma criança triste.

one day i had to leave my country, calm beach and palm tree
a casa do vizinho foi soterrada por um lago de água salgada.
era o mar avançando a cidade, a fuga, a escolha, a memória e a renúncia.

minha mãe andou de barco num lago que cresceu dentro da bacia de um vulcão. a água borbulhava doce e incandescente.
como ela, não sei caminhar sobre outras águas. quando estaremos livres disso e de todo o resto, minha mãe? só nas horas de partir? sinto, mas não vou te chamar dessa vez. a janela do meu quarto de criança é minha, a casa do vizinho invisível e finalmente mareada e o marulho só restam na memória
no entre nós
o muro do fim da nossa casa de criança e o mar imenso
eu também já tive muito medo por você mas
o muro é também o porto para o caos

o navio cargueiro imenso, meu cruzeiro encosta. eu tenho o bilhete de entrada, esse direito de passar, meu destino contraditório nos bolsos e nas mãos uma só cruzada. uma nova parede se me coloca a frente, não me deixando alcançar o olhar pelas escotilhas. o que eu não vejo, me enjôoa e foram entorpecendo o meu nariz aquele cheiro de diesel misturado com chumbo, ferro, tudo dentro feito de aço com o níquel. embaralhada, perdi esse navio das duas, o do meu bilhete. sem cálculo sentei-me na pequena área do muro, abraçada com a minha mochila e ficamos esperando, calmamente esperando.

quando o das cinco chegou vi sua porta lá longe e minha vontade de alcançá-la enorme. tão longe e tão alucinada tive que percorrer o em cima do muro com pé ante pé, num galope como um teste de equilíbrio, que, diga-se de passagem, muito me satisfez. um pouco mais gasta e com o fôlego alterado, alcancei o portal imenso e entrei no navio.

por dentro o navio era como um ônibus da viação gato preto, com os bancos pintados de azul com mancha de giz. dei o meu bilhete das duas para o maquinista de navio das cinco. o cobrador nada me perguntou e vi sentados, logo na primeira fileira, dois passageiros muito familiares.

meu pai não me disse palavra, carregava uma sacola de feira amarela e azul e estava já muito velho com uma bengala. fez um trejeito irônico e barrueco com a cabeça, foi para mim. já minha mãe ao lado dele, não me viu, vestida de vermelho e negro, sorrindo estática seu olhar para o futuro.

eu me sentei num banco qualquer do navio, me sentindo um gato com fones de ouvido
foi aí que me lembrei que quando o joão cabral de melo neto morreu, meu pai me disse que era um dia muito triste para ele.

3 comentários:

agente laranja disse...

Quando João Cabral de Melo Neto morreu, tudo o que ele tinha escrito celebrou alegremente.
Literatura é muito ciumenta, e os já-escritos encontram grande alívio em não temer mais serem substituídos pelos não-escritos.

Eva disse...

o muro é também o porto para o caos,

putaqueopariu júlia.


haja passagem, haja mala, haja música pra tanto mar.

marcio leandro disse...

Pois é, Júlia, eu também sinto saudades. Eu sempre penso em você, sempre penso em escrever, mas, apesar de eu não conseguir me libertar totalmente da palavra escrita, o ato de escrever se tornou algo estranho pra mim. Qualquer hora dessas eu te ligo.
Beijos.

 

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