20.7.07

Desde que comecei estas notas sem texto ouço como ruído de fundo algo que escreveu Jaime Gil de Biedma sobre o não escrever. Sem dúvida, suas palavras trazem maior complexidade ao labiríntico tema do Não: "Talvez fosse necessário dizer algo mais sobre isso, sobre o não escrever. Muita gente me pergunta isso, eu me pergunto. E perguntar-me por que não escrevo inevitavelmente desemboca em outra inquisição muito mais inquietante: por que escrevi? Afinal de contas, o normal é ler.* Minhas respostas favoritas são duas. Uma, que minha poesia consistiu -sem que eu soubesse- em uma tentativa de inventar uma identidade para mim; inventada e assumida, já não tenho vontade de colocar-me inteiro em cada poema, que era o que me apaixonava quando os escrevia. Outra, que tudo foi um equívoco: eu pensava que queria ser poeta, mas no fundo queria ser poema. E em parte, na pior parte, eu consegui isso; como qualquer poema medianamente bem-feito, agora careço de liberdade inteiror, sou todo necessidade e submissão interna a esse atormentado tirano, a esse Big Brother insone, onisciente e ubíquo: Eu. Metade Caliban, metade Narciso, temo-o sobretudo quando o escuto perguntar-me junto a uma sacada aberta: 'Que faz um rapaz de 1950 como você em um ano indiferente como este?' All the rest is silence".

Enrique Vila-Matas, em Bartleby e companhia.



*disso eu discordo.

13.7.07

a memória tem braços e tem pernas. tem muitas vozes. às vezessó vontade sem pernas. sorte dela se estivesse só na cabeça ou no sangue, nesse incrível e efusivo nosso corpo que tantas vezes vive só de estar no rastro do corpo de alguém,

no escuro, como me acontece sempre, mas agora no do seu quarto você recosta a cabeça no travesseiro empilhado no batente da cama e o seu sangue aterrorizado e também os braços e as suas pernas caladas enfim repousam
como se nunca, nunca antes por mim sepultados

na primeira vez era sair da cidade
na segunda o cais e a eternidade
finalmente resolvi sair do país
foi na noite que atravessei o jardim da minha casa e fui dar numa escada de concreto
um caracol de ângulos retos,

9.7.07

5.7.07

Há uma coisa, porém, a propósito da qual a ideologia oca não admite brincadeiras: a previdência social. "Ninguém deve sentir fome e frio; quem sentir vai para o campo de concentração: " essa pilhéria da Alemanha hitlerista poderia estar a brilhar como uma máxima sobre todos os portais da indústria cultural. Ela pressupõe com astuta ingenuidade o estado que caracteriza a sociedade mais recente: o facto de que ela sabe muito bem reconhecer os seus. A liberdade formal de cada um está garantida. Ninguém tem que se responsabilizar oficialmente pelo que pensa. Em compensação, cada um se vê desde cedo num sistema de igrejas, clubes, associações profissionais e outros relacionamentos, que representam o mais sensível instrumento de controle social. Quem não quiser se arruinar deve tomar cuidado para que, pesado segundo a escala desse aparelho, não seja julgado leve demais. De outro modo, dará para trás na vida e acabará por ir a pique. O facto de que em toda carreira, mas sobretudo nas profissões liberais, os conhecimentos especializados estão, via de regra, ligados a uma mentalidade de conformismo às normas enseja facilmente a ilusão de que os conhecimentos especializados são os únicos que contam. Na verdade, faz parte do planejamento irracional dessa sociedade reproduzir sofrivelmente tão-somente as vidas de seus fiéis. A escala do padrão de vida corresponde com bastante exactidão à ligação interna das classes e dos indivíduos com o sistema. Pode-se confiar no manager, e confiável também é o pequeno empregado, Dagwood, tal como este vive na página humorística e na realidade. Quem tem frio e fome, sobretudo quando já teve boas perspectivas, está marcado. Ele é um outsider e, abstracção feita de certos crimes capitais, a culpa mais grave é a de ser um outsider. Nos filmes, ele será no melhor dos casos um indivíduo original, objecto de um humorismo maldosamente indulgente. Na maioria dos casos, será o vilão, identificado como tal desde sua primeira aparição, muito antes que a acção tenha se desenvolvido o suficiente para não dar margem ao erro de acreditar, ainda que por um instante apenas, que a sociedade se volta contra as pessoas de boa vontade. De facto, o que se desenvolve actualmente é uma espécie de Estado de bem-estar social em grande escala. Para afirmar sua própria posição, as pessoas conservam em movimento a economia na qual, graças à técnica extremamente desenvolvida, as massas do próprio país já são, em princípio, supérfluas enquanto produtoras. Os trabalhadores, que são na verdade aqueles que provêem a alimentação dos demais, são alimentados, como quer a ilusão ideológica, pelos chefes económicos, que são na verdade os alimentados. A posição do indivíduo torna-se assim precária. No liberalismo, o pobre era tido como preguiçoso, hoje ele é automaticamente suspeito. O lugar de quem não é objecto da assistência externa de ninguém é o campo de concentração, ou pelo menos o inferno do trabalho mais humilde e dos slums. A indústria cultural, porém, reflecte a assistência positiva e negativa dispensada aos administrados como a solidariedade imediata dos homens no mundo dos competentes. Ninguém é esquecido, todos estão cercados de vizinhos, assistentes sociais, Dr. Gillespies e filósofos domésticos de bom coração, que intervêm bondosamente junto a cada pessoa para transformar a miséria perpetuada socialmente em casos individuais curáveis, na medida em que a depravação da pessoa em questão não constitua um obstáculo. A manutenção de uma atmosfera de camaradagem segundo os princípios da ciência empresarial - atmosfera essa que toda fábrica se esforça por introduzir a fim de aumentar a produção - coloca sob controle social o último impulso privado, justamente na medida em que ela aparentemente torna imediatas, reprivatiza, as relações dos homens na produção. Esta espécie de "assistência aos flagelados" espiritual lança uma sombra conciliatória sobre os produtos audiovisuais da indústria cultural muito antes que esse auxílio saia da fábrica e se estenda sobre toda a sociedade. Mas os grandes ajudantes e benfeitores da humanidade, cujos feitos científicos têm de ser apresentados pelos escritores como actos de compaixão, a fim de extrair deles um fictício interesse humano, funcionam como lugar-tenentes dos chefes das nações, e estes acabam por decretar a eliminação da compaixão e sabem prevenir todo contágio depois de exterminado o último paralítico.

Theodor W. Adorno e Max Horkheimer - Dialéctica do esclarecimento: A Indústria Cultural.

(vindo dos arquivos do brejão do umbigo)
 

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