26.9.06

aguardente ou a pequena fábula sem moral


para o alfredo
é difícil ter dois olhos quando se é insatisfeito

Havia um pântano de anemônas furta-cor, liláses e pretas. Uma antiga lenda da região contava que se drenassem a água, lá debaixo apareceria um gramado renovado, com pastagem cor de turmalina,
contra a agitação dos pulmões
mas para os antigos era impossível drená-lo, porque ainda não havia Tecnologia. ela apareceu ontem! e foi aí que nasceu grosserfuss, que depois de crescido e já alemão, tornou-se um naturalista, o renomado dr.Grosserfuss, que empreitou-se todo na vida e
com suas largas passadas, chegou ao condado de noite, trazendo sua noiva na mão e entoando:
"Meu bem,
o pântano era um lodo escuro,
o céu era um céu escuro,
escuro escuro". Cantando assim, envergonhava o medo, que se afastava criando, no buraco da coragem sem ato, saudades do que ele não sabia bem. Talvez não notasse que era porque perdia a mulher futura na figura da jovem que se assustava com o lodo.
Instalaram os canos, fizeram pontes de concreto e uma alta sinerurgia permitia a trituração dos detritos. Mas a noiva dormia mal, o estalar das tubulações pra ela não era ninféia, ranço, pasto era "um entupimento? noturno", pensava insone olhando para o homem que roncava.
Assim se foi, dia a dia o homem mandava drenar a água, noite a noite ela não dormia. Se ouvia de longe um eco de um novembro tardio, assustado na possibilidade de verão, que verão viria. Foi quando começou a chover e a empreitada toda teve que parar. Choveu tanto que a obra retrocedeu e com o concreto das bordas, o pântano encheu-se de chuva como torneira num tanque. Vieram os peixes, os operários foram dispensados. Até que parou de chover, amanheceu e, dando pra ver a água, a turmalina estava através dela,
dê de amar, aos amantes.
Foi aí que a noiva falou:

gross, não chove mais, mas eu tenho uma curva. o mundo se constrói como uma pipa, um catavento, quando venta demais... da última vez que escrevi para minha mãe torci um olho, agora meio cega me empurra para as cercas escuras da desconstrução, vamos embora, gross,
me dê a mão.

25.9.06

feliz ano-novo!

20.9.06

bildung

Imaginem que eu sou uma velha. Não deve ser difícil, mas faça com precisão: você que tantas vezes se deixa atordoar pelos passados, para nossa empreitada esqueça-os: os velhos deliram menos que nós ou já se acostumaram ao surto.

Antes de ser velha eu tinha uma salvação sonora recorrente: a pela palavra: abismo. Nessa época eu imaginava que como o futuro gostava de mim, ia guardando num baú as especiarias que me destinava, e se não tinha acontecido, era uma questão de ainda não ter saído do fundo da caixinha. Mas fui envelhecendo, comecei a perceber o pó atrás dos móveis, a geografia física das cidades por baixo do que há foi me atrapalhando, já que tudo o que está é uma superfíce construída como uma película em cima da terra, uma capa zás-tras, que se a arrancarmos junto com as tubulações de água suja, teremos um campo desértico, em que oliveiras e esquilos um dia se levantarão para depois fenecer? ora, deixo de bobagem, uma cidade arrancada produziria muitos destroços, palavra que os velhos de ouvidos limpos não podem ouvir. Sou velha, sei que a natureza é cruel e a doença uma lógica da pior espécie. Não posso adoecer e por isso não estanco. Por exemplo, aos domingos, esse dia do qual gostamos tanto, rego as hortênsias do meu vizinho, o seu Atílio, para quem presto favores desse tipo há anos.
Depois que parei de querer o que eu não queria, veio a maturidade que me trouxe o desatino, o ceticismo e toda espécie de cobranças em códigos de barra. Já na velhice me encontrei num desacerto cotidiano, como um tictac que não te deixa dormir, estava certa agora: de que eu iria morrer. Era necessário tomar medidas drásticas. Joguei fora a balança, liguei para o corpo de bombeiros e terminei meu affair de anos com o chefe da estação, ele chorou mas eu não me arrependi. Só me viam na vida dele, mas ninguém o via na minha vida. Comecei a escrever para não me preservar mais do sofrimento, para causar a linguagem máculas sem arrependimento. Voltei a usar sapatos de salto, menos pela elegância do compromisso social, mais pela capacidade daqueles calçados de me re-estabelecerem o tônus nas pernas. Meus netos gostaram, me disseram que eu "continuo em continuidade", ou algo do tipo "forte", mas minhas filhas pensaram que era só um modo meu de tentar não ser viúva. Eu só amarrei a boca e continuei usando minhas pernas torneadas. Mas como era só um simulacro de força, cai do scarpin preto que ganhei de natal. E agora fico pensando como eram bons aqueles tempos em que o rádio era só esse aparelho que presentearam à minha cabeceira desde que quebrei o fêmur, e fico aqui deitada, sem poder regar as hortênsias do seu Atílio.

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"O coração já não pode mais. Entre os bichos e as plantas, acontece-lhe dizer: Que fertilidade!- e a vida corrompe-se nos próprios fundamentos. Sente-se como um apóstolo sem fé. Desejaria morrer, arder no fogo apocalíptico das cidades. Ou ser devorado pela inteligência, estiolar de excessiva lucidez no meio da loucura campestre. Tradição, compreende uma: ama-a. Perdeu o nome, essa sabedoria. Beleza, é pouco. Verdade, é muito. Trata-se de um termo sutil que participa de uma e outra, que se tornou inútil, insensato."
Herberto Helder, em "Holanda", d' Os passos em volta.

16.9.06


ainda estava escuro, mas "talvez a manhã esteja começando", pensei ao descer daquele ônibus em "mais uma cidade histórica". chovia fino e eu tinha dúvidas, quanto ao século e a segurança da borracha do meu sapato, mas fui descendo a ladeira lenta, com a mala e a sacola que cada gente carrega na vida. dentro da mala de couro estava o que me falta, forrada e trancada mala de couro! naquele momento eu ainda não sabia, que havia esquecido a chave na última cidade em que me hospedara.
também, quem me visse de longe haveria de sentir aflição com a minha angústia, já que eu, tomando cuidado para não escorregar com a sola velha, toda vez que a sacola escorregava do meu ombro eu pensava em largá-la, "afinal? quem precisa dela?". mas alguém em algum lugar precisaria de alguma coisa que tinha lá dentro um dia, era o que eu pensava olhando para toda a frustração, através da boca frouxa de tanto que eu a abria. "para a desordem vou ter que comprar uma necessaire" e sorri de ironia, já sem fôlego. (dizê-los 'séculos' estão velhos também?)
vi uma porta de aço se levantando, da onde saiu um cheiro de pão quase pronto, e resolvi encostar minhas coisas, meu corpo no balcão e pedi:
-um café carioca e um estrondo, por favor?
a mulher quis saber da onde eu vinha, para onde eu estava, e mal tentei, começou a falar da tradicional festa da emancipação dos escravos que iria acontecer dali um ou dois dias. pois um homem entrou no salão e ela parou de falar. foi quando a mulher me deu a xícara com o café fervendo, encostando o dedinho de passagem no meu indicador e eu surpreendi um arrepio nas minhas costas, me comovendo com essa faculdade que retornava.
::
hurt

13.9.06

leiam o que caetano escreveu para nós. eu que era um homem rude virei toda atenção e, não sabendo como dizer exatamente que o texto dele me: _____, escrita com a vantagem da liberdade, só quero mesmo é aqui postar:

para júlia
partindo desses momentos de hoje, eu me lembro, ao viés, daqueles dias em que comecei a entender que meu corpo disputaria comigo os movimentos da velocidade, para me trazer, eu que olhava bobo e de lábio mole admirando os fubás, uns sinais mais íntimos de que o desempenho dos trajetos também seria terra e vermelho adentro na perna, ou uma parede mais dura quando todo o ritmo de ar diria nuvens, poeira, ou amarelo. a paisagem em que esse pequeno salamaleque se envolvia em cheiros e ramos se misturava com as boas feições de minha avó, que na época, ainda longe de atingir um canto de plantas molhadas, melodias e balanço, se decidia com os sorrisos doces e leves a guardar só com o amor, por um tempo cedido, os netos no sítio. nessa época, além de minha figura, também estava minha prima, um início de j, a seduzir a realidade com aquele ar irônico que a fez criar mais tarde, só para si, um quarto escuro de palavras, todo tecidos e luzes. em boa parte desse tempo nossa avó, apropriada a mim e à pequena saltimbanca, ia desviando os cantos óbvios das horas para envolver-nos quase numa atmosfera única da qual os outros enventuais parentes, vultos de conjunções e interjeições cinzas, não poderiam tomar parte. o poema começava a descer das árvores, e seria mesmo ela ou a gente, vagabundinhos, a dar a medida rodopiante de um conhecimento crescente e outro dos corpos, nossos próprios e pequenos corpos sendo de vidro, folha e areia? nem não interessa assuntar muito nisso; o certo é que foi naquele tempo que principiei a escrever com gotas de chuva, papel e palavra só aprenderia a usar muito depois, a mesma época em que minha prima já recitava os poemas de suas melhores invenções: me vêem nítidas agora as imagens de uma dobra variando cor em sua calça, os pássaros verdes que ela matava e fazia reviver com um franzido na testa, o sol parado entre a concha de suas mãos, e o pulo grande que atirava sua esperteza no corrente da água. lembro também que sentia muito medo à noite, pois me ______todo, o amarelo e o quente, não entendia mesmo como o fluxo ainda numa hora já tão séria em que nos despedíamos do mundo sob as ordens carinhosas de avó. ah, e acho que foi depois de um dia, em que a malandrinha me surpreendeu tentando caminhos secos entre os lençóis, que compreendi a exata importância de ocupar o espaço, de caminhar pelo corpo dentro de um tempo tão fictício. a disputa necessária entre eu e aquele outro que há em mim pôde então derramar traços e letras, essa minha prima sabia mesmo das coisas, e o poema adquiriu a fúria e a leveza do peixe fosforecente. ela sabia dos rios, como muito tempo depois, através mesmo do esquecimento que se interpusera entre nós, eu a voltei a ouvir dizer, no acaso da aparição do amor entre uns amores muito meus. agora sei porque, ao ver meu desespero naquela noite, ela deitou-me a paz de não temer, ela que, sempre ao voltar para casa, retornando de nossas férias, ia uma em direção as alturas dando a mão aos pais e outra, terrosa, vermelha, ardente, em direção ao nosso reino, deixando cair pelo caminho as sementinhas dos vários romãs donde ela retirava a tinta de sua proeza, a coleção mais doce dessa infância que volta a atravessar.
,
eu estava escrevendo e era um homem, isso te acontece? de virar homem e querer a proximidade de tudo? sem ter a noção de que mandar é não perceber, entrar na cafeteria e pedir um oswald de andrade à la carte, e comê-lo com um caráter de transfusão: sou o mais macho desse condado e não vou mais falar do nosso, exato, a que você disse não.
nos seus sonhos uma borboleta azul -por que não veio preta?- vestida de menina-de-renda trança um pirulito vermelho de condão e diz que me diz: maria-sem-vergonha vai esquecer e fazer do cio de um gato um gemido de comoção.

10.9.06


levantei logo cedo batendo a cabeça no beliche. É apertado, eu conheço, mas dormindo bem, esqueci que estava fora de casa. Nem ficou muito marcado e passar uns dias no campo tem mesmo dessas implicações.
Minha avó dorme sozinha no quarto ao lado, desde viúva. Parece que uma noite um primo meu sentiu tanto medo que quase chegou ao ponto de ____ nas calças, em toda a cama, e foi assim que ele conseguiu o consentimento da minha avó, de dormir no quarto maior, com ela.
Mas isso faz muito tempo e ninguém mais além dela usa a cama maior. Hoje já era meio-dia já, quando me levantei e, veja só, a sombra da painera já tinha atingido a mesa branca, onde me fizeram tomar o chá da tarde: aqui, com eles, desde sempre é assim, tanto se controlam as noitadas, como se antecipam as refeições, porque amanhã sempre pode faltar; precaução não, não, essa eu ia dizer que não falta nunca, mas
é um fenômeno a força que as coisas têm quando elas precisam. é raro que o silêncio dessa gente se arrebente até o avesso, mas acontece. uma vez, um cunhado meu perdeu um lábio mordido por dentro, "pelo menos lhe sobrou a testa," dizia o meu pai.
Assim como minha irmã, minha tia costumava ficar ausente, mas na segunda torrada com cebola, tinha acabado o chá de camomila e o não-formulado veio acetinando a garganta dela e ela, já com a falta de alívio que nos causa uma idéia cansada, falou com o indicador levantado:
-não somos nenhum hospício, está certo. sua avó não deixa ninguém se encostar. ela é o termômetro, o termostato, senão ela não é.
eu abaixei das garras do pássaro em vôo rasante, fingindo que terra sobrava do canteiro da horta e que eu a removia. uma excitação me conteve, eu olhei para os meus sapatos novos e pensei: então eu estava certa? era a minha tia, era ela, sem dúvida era ela, que teria ateado fogo aos lockers de amsterdã?

6.9.06



aha! soy yo,
o
para quem pergunta, júlia está isso
morosidade, rocha em expansão,
tudo em progress e logo o logo mais leve

2.9.06

Bem Querer

Quando o meu bem-querer me virEstou certa que há de vir atrásHá de me seguir por todosTodos, todos, todos o umbraisE quando o seu bem-querer mentirQue não vai haver adeus jamaisHá de responder com jurasJuras, juras, juras imoraisE quando o meu bem-querer sentirQue o amor é coisa tão fugazHá de me abraçar com a garraA garra, a garra, a garra dos mortaisE quando o seu bem-querer pedirPra você ficar um pouco maisHá que me afagar com a calmaA calma, a calma, a calma dos casaisE quando o meu bem-querer ouvirO meu coração bater demaisHá de me rasgar com a fúriaA fúria, a fúria, a fúria dos animaisE quando o seu bem-querer dormirTome conta que ele sonhe em pazComo alguém que lhe apagasse a luzVedasse a porta e abrisse o gás

chico buarque com maria bethânia, ao vivo

1.9.06


I'll wait for you until the streets become sand
And all the cellings in new york have come down
I'll wait for you until the stars dominate the skies again
 

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